[A Maury Gurgel Valente]
2/1/42
Alô, bem
Tudo muito poético. Uma chuva enorme me esperando na estação, um carro descoberto para me conduzir à Fazenda guiado por um belo negro e dois cavalos; uma capa grossíssima, cheirando a cavalo, para cobrir a jovem viajante. E os solavancos. E a sensação de perigo (quase nenhum, infelizmente) ao atravessar o riozinho. Por um triz - uma aventura! Faltou justamente o carro virar e a donzela cair desmaiada sobre a terra, os loiros cabelos misturados à lama.
Que tolices estou dizendo?
Mal consigo disfarçar a impaciência, essa é a verdade. É preciso sempre desconfiar quando assumo esse sorridente ar infeliz.
Como vai benzinho? Como vão tuas mãos?
Escreva-me, bem. Quando se trata de paziguar os outros, transforme-me subitamente numa grande fonte de serenidade. Eu mesma bebo dessa fonte. Estou sendo literária? Juro que faço o possível para mergulhar bem fundo dentro de mim e retirar belas coisas simples.
Ratinho curioso, perdoe essa carta desconexa e insegura. Além disso, prometo escrever à máquina, da próxima vez.
Receba um grande abraço meu, bem.
Clarice
P.S. - Estou com saudade de você.
Fazenda Vila Rica
Avelar - Est. do Rio
Referência Bibliográfica: LISPECTOR, Clarice - Correspondências - Rio de Janeiro: Rocco, 2002