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Por que cartas?
Há quem não entenda as cartas como forma agradável de comunicação entre pessoas, quase um presente - ainda mais nesses tempos de globalização onde a comunicação tem se tornado em tempo cada vez mais real.
As cartas seduzem porque é parte da expressão humana, são o espelho da alma de quem as escreve, quando as lemos somos remetidos à reflexão das situações, da época, das condições e os ambientes culturais das produções desses artefatos.
Ler cartas escritas em outros tempos significa penetrar na intimidade de seus autores, compreender os discursos que faziam de si mesmos e do mundo como um recorte muito particular das possibilidades de leitura dos homens e das coisas, além de conhecer a sociedade da época e seus costumes. Entretanto, lê-las com o intuito de compreender aquele que as escreveu, como produto e ao mesmo tempo, como agente histórico, não pode colocar de lado a compreensão do tempo e espaço como variações fornecedoras dos vínculos explicativos que compõe a essência do enredo de uma narrativa.
As cartas apresentadas aqui lembram-nos que toda a história foi feita por pessoas que em certas épocas estiveram vivas - ou ainda estão - pessoas que foram ardorosas, apaixonadas e cheias de emoções, emoções tão ternas que deixaram suas marcas, passaram de um meio de expressão pessoal ao campo artístico, algumas das personagens dessas mensagens são famosas, outras não, mas o importante mesmo é o afeto.
Meu Avô contava-me que o meu bisavô - que não cheguei a conhecer - e que foi diretor de cena em um teatro da Europa, dizia que um ator atingia seu apogeu quando inspirava pessoas. Dessa maneira, este Blog contém a mesma ideia, se conseguir inspirar as pessoas durante sua leitura, atingirá o zênite.
Desejo a todos que passarem por aqui, momentos de emoções diversas.
Anna Garcia

domingo, 6 de janeiro de 2013




[A Maury Gurgel Valente]

2/1/42

Alô, bem

Tudo muito poético. Uma chuva enorme me esperando na estação, um carro descoberto para me conduzir à Fazenda guiado por um belo negro e dois cavalos; uma capa grossíssima, cheirando a cavalo, para cobrir a jovem viajante. E os solavancos. E a sensação de perigo (quase nenhum, infelizmente) ao atravessar o riozinho. Por um triz - uma aventura! Faltou justamente o carro virar e a donzela cair desmaiada sobre a terra, os loiros cabelos misturados à lama.
     Que tolices estou dizendo?
     Mal consigo disfarçar a impaciência, essa é a verdade. É preciso sempre desconfiar quando assumo esse sorridente ar infeliz.
     Como vai benzinho? Como vão tuas mãos?
     Escreva-me, bem. Quando se trata de paziguar os outros, transforme-me subitamente numa grande fonte de serenidade. Eu mesma bebo dessa fonte. Estou sendo literária? Juro que faço o possível para mergulhar bem fundo dentro de mim e retirar belas coisas simples.
     Ratinho curioso, perdoe essa carta desconexa e insegura. Além disso, prometo escrever à máquina, da próxima vez.
     Receba um grande abraço meu, bem.  
Clarice

P.S. - Estou com saudade de você.
Fazenda Vila Rica
Avelar - Est. do Rio

Referência Bibliográfica: LISPECTOR, Clarice - Correspondências - Rio de Janeiro: Rocco, 2002

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Para vinte anos de um casamento


Não sabíamos muito, um sobre o outro, vinte anos atrás. fomos guiados por nossa intuição; você me deixou arrebatado de paixão. Nevava quando nos casamos no Ahwahnee. Passaram-se anos, vieram os filhos, bons tempos, tempo difíceis, mas nunca tempos ruins. Nosso amor e nosso respeito perduraram e cresceram. Passamos por tantas coisas juntos e aqui estamos, de volta ao lugar onde começamos vinte anos atrás - mais velhos, mais sábios - , com rugas no rosto e no coração. Agora conhecemos boa parte das alegrias, dos sofrimentos, dos segredos e das maravilhas da vida, e ainda estamos juntos. Meus pés nunca voltaram a tocar no chão.

As palavras acima foram escritas por Steve Jobs para sua esposa Laurene Powell, para a comemoração de seu aniversário de vinte anos de casamento, juntamente a com a carta ele daria a ela uma elegante caixa contendo cópias grandes das fotos do casamento, impressas em grossas placas de papel. Jobs leu a carta ao seu biógrafo Walter Isaacson e ao término da leitura, chorava copiosamente. 


Referência Bibliográfica: ISAACSON, Walter - Steve Jobs: a biografia - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

domingo, 29 de abril de 2012

Sobre a falta de tempo que nos aproximou da gente


Sábado, 21 de agosto de 2010.

Porque as distâncias eram grandes, escreviam-se cartas. Porque era preciso esperar as cartas, havia tempo. Porque havia tempo, falava-se de amor. Porque falava-se de amor, escreviam-se mais cartas.

E porque era preciso fazer as cartas chegarem mais rápido, construíram-se estradas. Estradas que nos levaram mais rápido ao futuro: encurtaram-se as distâncias.

E porque encurtaram-se as distâncias, aumentou  trabalho. E porque o trabalho aumentou, escasseou o tempo. E pela escassez do tempo, cessaram as cartas. E pela falta das cartas, recesso para o amor.

Porque o amor entrou em recesso, o avanço. E porque veio o avanço, criou-se a tal rede. E porque a rede se criou, encurtaram-se as distâncias. Até mesmo entre os amores. Até mesmo entre os tempos.

E no mundo contido dentro da rede, nasceram de novo as cartas. Agora instantâneas. Que, como aviõezinhos de papel, eram lançadas incessantemente de uma ponta a outra do mapa. Palavras, dores, saudades e sons percorriam num susto longas distâncias, para chegar aos ouvidos da outra ponta do mapa.

O mundo virou teia de cartas. Um emaranhado de dores e amores e gentes se vendo e ouvindo e dizendo em todas as línguas. Um mundo abraçando o mundo carente de cartas, caminhos, estradas e de andar a pé para relembrar.

Virtuais, as cartas tornaram amores reais.

E a cada nova carta, um mundo de amor. A teia. E a cada novo mundo, mais cartas. E já não era possível desfazer os nós. E as pessoas deram-se as mãos, como antes não acontecia. E eram semelhantes as mãos que se davam, sem que a distância fosse empecilho. E era de mãos também a grande teia.

Mas, como o virtual brilhasse, o real perdeu sua força. Não mais se olharam as pessoas. O amor em recesso mais uma vez.

E como o recesso faz buracos, mais gente da ponta do mapa procurou gente da outra ponta. E do meio. E de um pedacinho ao sul ou ao norte. E as latitudes as mais diversas passaram a se olhar, como não mais os olhos se olhavam. E como as palavras de longe chegavam ao pé do ouvido, falou-se de perto. E porque de longe acendiam-se almas, encurtaram-se as distâncias.

Mas, um dia, de tanto viajarem as cartas, encurtando distâncias e mais distâncias, alguém olhou para o lado e descobriu a verdade.

O longe estava perto. O perto estava longe.

E assim a escassez de tempo nos aproximou da gente. A escassez do tempo nos disse verdades com sua voz rouca. E nos perguntamos se tudo isso fazia sentido. E choramos. E escrevemos novas cartas. E nos demos as mãos de verdade. E nos olhamos no olho. E redescobrimos o tempo.

E amamos. Não mais a escassez. Não mais o virtual. Não mais o longe.

E permanecem as cartas que vão e voltam. Mas o amor não entra mais em recesso.
Cristiana Guerra





sábado, 28 de abril de 2012

Uma Carta de Domingo



[A Elisa Lispector e Tania Kaufmann]

Berna, 5 de maio de 1946 - 4 horas, domingo.

Minhas queridas:

É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda. No domingo, como hoje, passou um grupo do Exército da Salvação, homens e mulheres cantando em coro, com voz bem calma e afinada, sem vergonha. Às vezes se veem camponesas, de alguma cidadezinha perto, vestidas com os trajes regionais, o rosto vermelho, honesto, com olhos azuis - os olhos são tão honestos que nem parecem observar. E os camponeses com roupa de ombros estreitos, nariz corado. E o silêncio que faz em Berna - parece que todas as casas estão vazias, sem contar que as ruas são calmas. Dá vontade de ser uma vaca leiteira e comer durante uma tarde inteira até vir a noite um fiapo de capim. O fato é que não se é a tal vaca, e fica-se olhando para longe como se pudesse vir o navio que salva os náufragos. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz? Em Berna ninguém parece precisar um do outro, isso é evidente. Todos são laboriosos. É engraçado que pensando bem não há um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e tão chato este domingo... Parece domingo em São Cristóvão. Mas a prática termina ensinando que jamais se deve no domingo ir de tarde ao cinema, deve-se sempre ir de noite, porque se fica esperando pela noite... É o caso de hoje, embora não haja filmes direito para se ver. Hoje depois do almoço fomos ver os ursos de Berna. Os ursos são o símbolo da cidade; quando se ia fundar a cidade encontrou-se um urso; isso foi considerado um bom augúrio e ali mesmo fundou-se Berna, onde agora é Bärengraben, caverna dos ursos. É por um caminho muito bonito, ladeando o rio, que é mais ou menos raso, muito caudaloso e brilhante. Dá-se comida aos ursos e para eles ganharem comida eles procuram fazer gracinhas - gracinhas de urso... É muito bonito. Mas num domingo... Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas. Por exemplo, eu ia passar um domingo com vocês. Essa carta é bestinha, é a carta de domingo, soa a "ajantarado" e a folga de empregada... e a mosca voando... Na verdade quando eu escrevo a carta eu estou com um anzol compridíssimo cuja a isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta. É um jogo sujo, esse de mandar qualquer carta para receber RESPOSTA. O pior é que vocês, com falta de tempo, reúnem dez cartas minhas e respondem uma.
Estou me lembrando de Marcinha: fui levá-la ao cinema Rex e comecei a errar caminho que não foi vida, de vez em quando eu via que estava entrando por um beco errado. A Marcinha suportou tudo calada. E eu calada também, envergonhada. De repente Marcinha disse: titia, eu acho que você está bobeando...
Dando assim notícias de Marcinha, que é a flor mais preciosa do mundo, eu encerro a missiva de domingo e vou por a carta no correio, se estiver aberto, para pegar o avião de amanhã. Neste mesmo avião seguem uma carta para S. Clemente e outra para Silveira Martins, escritas ontem; botei ontem a data de hoje porque sabia que só iriam amanhã. Me abracem, queridas, sejam felizes sempre.
                                                                                                                                         Clarice
Referência bibliográfica: LISPECTOR, Clarice - Minhas Queridas - Rio de Janeiro: Rocco, 2007

quarta-feira, 4 de abril de 2012

UMA MÃE AMOROSA

São Paulo, agosto de 1989

Querida Filha,

Venho por meio desta dizer que, querer é poder, e eu tenho certeza de que você quer e que você pode.
Hoje quero te falar que me sinto privilegiada e sou a mãe mais feliz do mundo por ter escolhido você, um ser maravilhoso, uma filha exemplar, amiga dos amigos e também dos que não são tão amigos assim porque você acaba conquistando a todos com a simplicidade de alma, coisa rara nesses tempos tumultuados. Você é única, especial.

Estou indo bem, fazendo o tratamento para ficar boa e, se Deus quiser, logo ir para nossa casa. O hospital é ótimo, os médicos e a equipe são atentos às minhas necessidades, fique tranquila, eu não poderia estar em condições melhores.

Quero lhe dizer agora o que não havia dito antes por falta de oportunidade: quando você passou no vestibular e fez sua matrícula na faculdade, chorei muito como sempre, você sabe que esse é o meu jeito de ficar feliz ou triste, ler seu nome no jornal entre os aprovados quase me fez explodir de emoção e só não tivemos uma comemoração porque acabei atrapalhando tudo, peço-lhe desculpa por isso. Já passamos a metade do ano com você frequentando as cadeiras do Largo de São Francisco, o que enche o meu peito de orgulho, creio que você não poderia me dar alegria maior nessa vida e, mesmo que eu não estiver mais aqui, siga em frente porque a mamãe vai estar sempre com você.

Sempre apostei e acreditei em você. Admiro sua inteligência, embora nem sempre tenha te compreendido de imediato - é que, às vezes, eu precisava de um tempo para processar as coisas em sua velocidade e como foi difícil pra mim, perceber suas necessidades! Sei que você não gosta que te diga essas coisas, mas te peço que não seja tão modesta e não se envergonhe disso filha, não esconda nunca quem você é. Gostaria que você se mostrasse mais, algumas pessoas que convivem com você, não sonham nem de longe quem você é porque você desprende uma energia desnecessária para se  esconder dentro de sua concha. Isso não é bom, minha filha, não podemos passar a vida inteira atrás de uma máscara, aliás, máscaras não são boas e nós duas bem o sabemos. Lembre-se de que abri mão de você por alguns períodos ao longo desses anos, para te dar oportunidades de ter uma bagagem capaz de ajudá-la a desempenhar seu papel sem medos e "grilos", como você mesma gosta de dizer. Abrir mão de sua presença, para você sair mundo afora com pessoas que não fosse eu, nem sempre foi fácil, você pode avaliar isso me conhecendo tão bem, talvez melhor do que eu mesma. Por isso peço para que deixe essa insegurança e timidez de lado, isso só nos atrapalha. Seja capaz de comunicar-se, filha, e mostre-se.

Quero dar os parabéns pelo seu aniversário e minha bênção, pois você merece, que Deus te ilumine e te proteja sempre, que você seja saudável e muito feliz. Filha, nunca se esqueça de que você é forte, por isso, nunca pare no meio do caminho indecisa porque a indecisão pode ser muito ruim, se demoramos muito tempo para decidirmos algo, as oportunidades passam, fica tarde. Continue sendo responsável e honesta com tuas coisas e com as pessoas, essas são as duas principais de tantas qualidades que admiro em seu caráter, qualidades bem difíceis de se encontrar e cada vez mais raras nos dias que seguem.

No mais, só tenho a agradecer a Deus por ter me abençoado e presenteado com a oportunidade de tê-la escolhido como filha, a filha que você tem sido pra mim durante esses dezessete anos e que qualquer outra mãe, desejaria para si.

Eu a amo.
Muitos beijos dessa mãe feliz.

OBS.: Acervo particular.
 Para preservar a identidade das envolvidas, essa carta não cita nomes e a data.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Fogo da Amizade


Europa, Suíça, Berna, Ostring, 5 de agosto de 1946,
segunda-feira de manhã, 10 horas menos 10 minutos

Fernando,
recebi carta daquela moça Diva, lembra? e ela me mandou seu artigo "O Sentimento e a Palavra", que assim  recebi pela segunda vez. Li de novo e fiquei tão contente... Foi de novo uma carta sua, e uma conversa. Fiquei animada, não importa que daqui a pouco acabe e que eu vá com alma morta para a costureira... O que importa é que fiquei como estou agora, bem na primavera. De repente me pareceu que eu devo continuar a trabalhar, que tudo está ruim, mas que é sempre assim mesmo, que as coisas são desconhecidas até que rebentam numa conhecida, a pessoa está só no mundo de modo que deve tomar certas providências urgentes de silêncio e meditação, já que não se sabe nem se pode agir, e que de vez em quando a gente pode receber este presente gratuito que é a palavra amiga de um amigo, e suponho que há compensação e não vejo por que ela haveria de ser maior - esta já é grande e é mais do que se merece. Assim, mando depressa este momento de felicidade para você, e espero que ele vá incendiando papéis e ervas por onde passar e quando chegar a Nova York vá subindo em fogo rasteiro as escadas e chegue junto de Helininha de Tróia e de Fernando, o Sabino, num grande fogo de amizade. Amém.
                                                                                                                                                    Clarice

Referencia Bibliográfica:
SABINO, Fernando - Cartas perto do coração - 6ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2007


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O Amor é o cumprimento da Lei


Paulo de Tarso, o "Apóstolo dos Gentios", como ficou conhecido São Paulo, escreveu esta carta na qual encontramos a famosa passagem que fala do amor genuíno. É uma das cartas mais poéticas de todos os tempos. Por que esta carta continua tão atual mesmo tendo sido escrita por volta do ano 55 da era comum?
Não há outra prerrogativa: O Amor é o cumprimento da Lei.


1ª Epístola aos Coríntios

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, 
se não tiver amor, 
serei como o bronze que soa,
ou como o címbalo que retine.
Ainda que eu tenha o dom de profetizar
e conheça todos os mistérios e toda a ciência;
ainda que eu tenha tamanha fé, 
a ponto de transportar montanhas,
se não tiver amor, nada serei.

E ainda que eu distribua todos os 
meus bens entre os pobres
e ainda que entregue meu próprio
corpo para ser queimado,
se não tiver amor,
nada disso me aproveitará.

O amor é paciente, é benigno,
o amor não arde em ciúmes,
não se ufana, não se ensoberbece,
não se conduz inconvenientemente,
não procura seus interesses,
não se ressente do mal;
não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, 
tudo suporta.

O amor jamais acaba.
Mas, havendo profecias, desaparecerão;
havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, passará.
Porque em parte conhecemos,
e em parte profetizamos.
Quando, porém, vier o que é perfeito,
o que então é em parte será aniquilado.

Quando eu era menino, falava como um menino,
sentia como um menino.
Quando cheguei a ser homem, 
desisti das coisas próprias de menino.

Porque agora vemos como em espelho,
obscuramente, e então veremos face a face;
agora conheço em parte, e então
conhecerei como sou conhecido.

Agora, pois, permanecem a Fé,
a Esperança, e o Amor.
Estes três.

Porém, o maior deles é o Amor.