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Por que cartas?
Há quem não entenda as cartas como forma agradável de comunicação entre pessoas, quase um presente - ainda mais nesses tempos de globalização onde a comunicação tem se tornado em tempo cada vez mais real.
As cartas seduzem porque é parte da expressão humana, são o espelho da alma de quem as escreve, quando as lemos somos remetidos à reflexão das situações, da época, das condições e os ambientes culturais das produções desses artefatos.
Ler cartas escritas em outros tempos significa penetrar na intimidade de seus autores, compreender os discursos que faziam de si mesmos e do mundo como um recorte muito particular das possibilidades de leitura dos homens e das coisas, além de conhecer a sociedade da época e seus costumes. Entretanto, lê-las com o intuito de compreender aquele que as escreveu, como produto e ao mesmo tempo, como agente histórico, não pode colocar de lado a compreensão do tempo e espaço como variações fornecedoras dos vínculos explicativos que compõe a essência do enredo de uma narrativa.
As cartas apresentadas aqui lembram-nos que toda a história foi feita por pessoas que em certas épocas estiveram vivas - ou ainda estão - pessoas que foram ardorosas, apaixonadas e cheias de emoções, emoções tão ternas que deixaram suas marcas, passaram de um meio de expressão pessoal ao campo artístico, algumas das personagens dessas mensagens são famosas, outras não, mas o importante mesmo é o afeto.
Meu Avô contava-me que o meu bisavô - que não cheguei a conhecer - e que foi diretor de cena em um teatro da Europa, dizia que um ator atingia seu apogeu quando inspirava pessoas. Dessa maneira, este Blog contém a mesma ideia, se conseguir inspirar as pessoas durante sua leitura, atingirá o zênite.
Desejo a todos que passarem por aqui, momentos de emoções diversas.
Anna Garcia

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Carta Poema

Hélio Pellegrino - um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse - como ficou conhecido o grupo formado pelos amigos Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, escreve aos amigos uma bela declaração de amor, um amor que rendeu uma amizade que se estendeu pela vida afora.




Belo Horizonte, 4 de maio de 1945.

Fernando Sabino, meu amigo, as rosa estão frias
E estremecem nas hastes como uma voz de eternidade.
Não te contarei nada, ou quase nada.
Nada adiantarei, nem de meus lábios sairá o aviso
        ou a presença,
Nem o olhar entenderás - é tarde! Na Rua da Bahia
        é tarde,
Faz tarde na Praça, nos bancos adolescentes, nas rosas
        e nos jardins,
Nas fontes incansáveis é a tarde a marulhar o crepúsculo
        entre flores.
Uma vez houve flores reais, não puras abstrações
        de quem soluça.
Nesse tempo, Fernando, tudo era leve, calmo e exato.
A alma se alimentava de tempestade,
Mas a tempestade é a fome das águias invencíveis.
Nesse tempo, havia a glória e havia a morte.
A voz de meus amigos era quente de poesia,
Sua áspera ternura me inundava.
E de sua revolta saltavam os artigos,
As confissões, os diários, os poemas.
Lembra-te, Otto? A manhã no Parque,
Cintilante como uma aurora que nascesse muda,
Calma e grave, na agitação dos momentos supremos?
Os caminhos da terra eram ampliados pela dor
        que nos possuía,
Conquistávamos o mundo e o perdíamos num sorriso
        sem segredo,
Avançávamos no tempo e o tempo nos acolhia
        atribuindo seus frutos,
Amargos ou doces, e escorrendo uma experiência para sempre.
Nestas horas os compromissos com o futuro se enriqueciam
        no sangue,
As palavras vinham carregadas de uma firmeza
        que não há mais.
Nenhum atropelo, nenhum cansaço, nenhum amor.
Solitários e puros.
Nascíamos para a vida como quem recebe uma herança
        e a despreza.
Tu, Otto, tinhas nas mãos o grande fogo sinaleiro,
Capaz de acender na noite a vasta bandeira das conquistas.
Carregavas nos lábio um sabor de aventura e de tédio,
E de teus braços esguios brotavam marujos acostumados
        à peleja do mar.
Eras belo como uma flor rebelada,
Puro como um jato de aurora,
Limpo e profundo como a água onde os musgos envelhecem.
Nada te detinha, e nos cafés como no quarto eras
        o mesmo punho aceso.
A mesma coragem e o mesmo heroísmo que te fazia
        o querido entre todos,
O amado entre todos, o procurado, o puro.
Tua estirpe era a melhor e a mais lúcida,
Tua estrela a mais rubra, se bem que a mais frágil,
Tua voz a mais velada, se bem que a mais firme,
A mais clara, a mais carregada de esperança,
        a mais ouvida.
Nem um momento te arrastavas. O teu vulto negro
        ainda se projeta
Como um grito de perenidade.
O teu capote encharcado de estrelas,
A voz rouca embebida de caminhos inesperados,
A fé no teu Deus, a confiança na Caridade,
        o irrevelado amor pelos homens.
E tu, Fernando, príncipe encantado surgindo entre lírios,
Pálido cavaleiro que se arrasta entre o blues
        e uma sinfonia desesperada,
O incompreendido, o querido vulto mundano
        que arrebenta nos salões.
Como uma rosa de inverno, sufocada e pura ainda,
        apesar da sevícia.
Teu sonho resplandece sempre, cavaleiro armado de prata,
Teu sorriso é uma fogueira, uma mensagem e um apelo.
De tua infância quieta tens a fronte pensativa
E as mãos enormes, interrogativas e espalmadas.
Os caminhos te legaram músculos longos e ligeiros,
Sabes nadar, medes a direção do vento e conheces
        os caminhos do mar,
No entanto te perdes, amigo,
E a tua bússola não é mais do que um cata-vento alucinado,
A tua segurança se refaz em passo de bêbado
        e se amplia na aurora,
Teu vulto se desenhando nítido e inesquecível
        entre as árvores.
Nada sabes, e é a sabedoria, o consolo e a palavra.
Te lembras, amigo? Na bicicleta de fogo varamos
        a madrugada intraduzível,
Consultamos o frio dos astros e nos precipitamos
        enlouquecidos.
Nossas confidências venciam o vento e caíam por terra
        como um fruto farto.
Então eras o príncipe comandando o seu reinado,
Eras o sábio penetrando os arcanos da vida,
Eras o irmão, carne da mesma carne, raça da mesma raça,
Superando o silêncio e a morte.
E tu, Paulo, dor de minha ternura, ternura desta mágoa,
Tu pequeno, ardendo entre ciprestes
        de uma cidade desconhecida,
Tu que carregas os nossos destinos e por isso repousas,
E por isso te deitas na relva, fixando o sol de fogo
Que oscila sobre tua amorável cabeça.
És triste, Paulo, e por isso te compreendo
Apenas nas horas em que a madrugada fertiliza as encostas.
És profundo e grave, e por isso o teu gesto às vezes dói
Como quem se despede e vai para longe.
És generoso mas tímido, tens medo
E por isso há em ti a contextura dos heróis,
Dos que se arriscam, dos que não temem,
        dos que se precipitam
E dos que se perdem.
Ainda embarcarás.. Ouço já o teu grito
        comandando a largada - e fico triste.
Violarás portos sem nome e te renderás escravo.
Depois, a vitória. Pois a vitória está contigo,
No teu gesto de desmedida loucura,
Na tua roupa de marinheiro,
        na tua vocação de esquecimento,
Na tua voz que despreza para amar
        numa ardência secreta,
No teu jeito de olhar, esquivo movimento
        de quem se furta ao efêmero
Para se entregar após, fecundo e grande,
        ao tempo sem tempo ou território.

Hélio Pellegrino

Referência Bibliográfica:
SABINO, Fernando - Cartas na Mesa - Rio de Janeiro: Record, 2002.