Minhas queridas:
É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda. No domingo, como hoje, passou um grupo do Exército da Salvação, homens e mulheres cantando em coro, com voz bem calma e afinada, sem vergonha. Às vezes se veem camponesas, de alguma cidadezinha perto, vestidas com os trajes regionais, o rosto vermelho, honesto, com olhos azuis - os olhos são tão honestos que nem parecem observar. E os camponeses com roupa de ombros estreitos, nariz corado. E o silêncio que faz em Berna - parece que todas as casas estão vazias, sem contar que as ruas são calmas. Dá vontade de ser uma vaca leiteira e comer durante uma tarde inteira até vir a noite um fiapo de capim. O fato é que não se é a tal vaca, e fica-se olhando para longe como se pudesse vir o navio que salva os náufragos. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz? Em Berna ninguém parece precisar um do outro, isso é evidente. Todos são laboriosos. É engraçado que pensando bem não há um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e tão chato este domingo... Parece domingo em São Cristóvão. Mas a prática termina ensinando que jamais se deve no domingo ir de tarde ao cinema, deve-se sempre ir de noite, porque se fica esperando pela noite... É o caso de hoje, embora não haja filmes direito para se ver. Hoje depois do almoço fomos ver os ursos de Berna. Os ursos são o símbolo da cidade; quando se ia fundar a cidade encontrou-se um urso; isso foi considerado um bom augúrio e ali mesmo fundou-se Berna, onde agora é Bärengraben, caverna dos ursos. É por um caminho muito bonito, ladeando o rio, que é mais ou menos raso, muito caudaloso e brilhante. Dá-se comida aos ursos e para eles ganharem comida eles procuram fazer gracinhas - gracinhas de urso... É muito bonito. Mas num domingo... Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas. Por exemplo, eu ia passar um domingo com vocês. Essa carta é bestinha, é a carta de domingo, soa a "ajantarado" e a folga de empregada... e a mosca voando... Na verdade quando eu escrevo a carta eu estou com um anzol compridíssimo cuja a isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta. É um jogo sujo, esse de mandar qualquer carta para receber RESPOSTA. O pior é que vocês, com falta de tempo, reúnem dez cartas minhas e respondem uma.
Estou me lembrando de Marcinha: fui levá-la ao cinema Rex e comecei a errar caminho que não foi vida, de vez em quando eu via que estava entrando por um beco errado. A Marcinha suportou tudo calada. E eu calada também, envergonhada. De repente Marcinha disse: titia, eu acho que você está bobeando...
Dando assim notícias de Marcinha, que é a flor mais preciosa do mundo, eu encerro a missiva de domingo e vou por a carta no correio, se estiver aberto, para pegar o avião de amanhã. Neste mesmo avião seguem uma carta para S. Clemente e outra para Silveira Martins, escritas ontem; botei ontem a data de hoje porque sabia que só iriam amanhã. Me abracem, queridas, sejam felizes sempre.
Clarice
Referência bibliográfica: LISPECTOR, Clarice - Minhas Queridas - Rio de Janeiro: Rocco, 2007