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Por que cartas?
Há quem não entenda as cartas como forma agradável de comunicação entre pessoas, quase um presente - ainda mais nesses tempos de globalização onde a comunicação tem se tornado em tempo cada vez mais real.
As cartas seduzem porque é parte da expressão humana, são o espelho da alma de quem as escreve, quando as lemos somos remetidos à reflexão das situações, da época, das condições e os ambientes culturais das produções desses artefatos.
Ler cartas escritas em outros tempos significa penetrar na intimidade de seus autores, compreender os discursos que faziam de si mesmos e do mundo como um recorte muito particular das possibilidades de leitura dos homens e das coisas, além de conhecer a sociedade da época e seus costumes. Entretanto, lê-las com o intuito de compreender aquele que as escreveu, como produto e ao mesmo tempo, como agente histórico, não pode colocar de lado a compreensão do tempo e espaço como variações fornecedoras dos vínculos explicativos que compõe a essência do enredo de uma narrativa.
As cartas apresentadas aqui lembram-nos que toda a história foi feita por pessoas que em certas épocas estiveram vivas - ou ainda estão - pessoas que foram ardorosas, apaixonadas e cheias de emoções, emoções tão ternas que deixaram suas marcas, passaram de um meio de expressão pessoal ao campo artístico, algumas das personagens dessas mensagens são famosas, outras não, mas o importante mesmo é o afeto.
Meu Avô contava-me que o meu bisavô - que não cheguei a conhecer - e que foi diretor de cena em um teatro da Europa, dizia que um ator atingia seu apogeu quando inspirava pessoas. Dessa maneira, este Blog contém a mesma ideia, se conseguir inspirar as pessoas durante sua leitura, atingirá o zênite.
Desejo a todos que passarem por aqui, momentos de emoções diversas.
Anna Garcia

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Uma russa que se sente brasileira

Um autorretrato "de corpo inteiro" é o que 
Clarice Lispector encaminha ao 
Presidente Getúlio Vargas, em carta de 3 de junho de 1942, ao solicitar-lhe a antecipação de seu pedido de naturalização. As linhas firmes e claras não suprimem o tom pessoal.

Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942

Senhor Presidente Getúlio Vargas:

Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n'A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também.
Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe - o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado - e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre el. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar a Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.
Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação - requisito que poderia alegar para ter direito de pedir a V. Exª. a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do rio e dos estados, na divulgação e na propaganda do governo de V. Exª.. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo. 
Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por V. Exª., e estive mesmo ao lado de V. Exª mais de uma vez, sendo que a última em 1º de maio de 1941, Dia do Trabalho.
Se trago a V. Exª. o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira.
Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo. Infelizmente, o que não posso provar materialmente - e que, no entanto, é o que mais importa - é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.
Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a V. Exª. a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de V. Exª. tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, Senhor Presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.
                                                                                                             Clarice Lispector

Clarice não voltará à Rússia, mas viverá, irremediavelmente, a sensação de sentir-se "estrangeira nos vários lugares em que passará a viver na companhia do marido.


Referencia Bibliográfica:
MONTERO, Teresa (Org.) - Correspondências Clarice Lispector - Rio de Janeiro: Rocco, p. 33-34, 2002. 

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